quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Mário de Carvalho - Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde

 

Esclarecem-se os incautos: «Este não é um romance histórico» porque o município de Tarcisis nunca existiu. Fica difícil de acreditar perante tão exímias descrições dos costumes e quotidianos de uma povoação do Império Romano no início do primeiro milénio: o que comem, como se relacionam, quem manda, no que acreditam, como se divertem, como julgam e o que toleram. 
Lúcio Valério Quíncio é o duúnviro de Tarcisis. Será seguro classificá-lo como um homem justo, incorruptível, compassivo e dedicado, embora, talvez, demasiado alheado dos pequenos mexericos que percorrem as ruas de boca em boca e que o aproximariam das massas. A seu lado, Mara, companheira de e para toda a vida, uma mulher discreta com o dom de proferir ou calar as palavras certas nas ocasiões mais delicadas. 
Sendo tudo isto verdade, por que razão desabafa Lúcio, logo no primeiro capítulo, os males que sofre no exílio («Nunca quis lembrar-me o meu exílio nem diminuir-me com a memória dos meus infortúnios.»)? Algo correu mal durante a sua governação que, justiça lhe seja feita, nunca desejou. 
Lutar contra mouros torna-se, afinal, tarefa bem mais fácil do que lutar contra a deslealdade no seio da sua própria comunidade que se mostra agitada e, sem motivos, descontente. O aparecimento de uma seita - em tudo semelhante à religião cristã, dita «condenada como tantas outras modas a ser engolida pelos abismos do tempo. Fumos fátuos de um lume de palha…» - que entra em conflito com os preceitos romanos foi apenas o rastilho de uma explosão certa com data por anunciar. 
Esta é uma história de princípios, de solidão e de lealdade. Mário de Carvalho escreveu-a como bem sabe, escolhendo criteriosamente os termos, explorando a riqueza da língua portuguesa, sem nunca deixar que isso lhe roubasse a objetividade de um enredo que critica duramente as esferas de poder populistas, corruptas e adeptas do compadrio.

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